
Recordo-me de quando as minhas feições eram apenas rascunhos, quando sonhos faziam de todo sentido e brincar aos legos durante horas num cubículo sem sol fazia ainda mais. Tempos bem doces recordo, em que eu - de cabelos compridos e penteados, dois furos nas orelhas, pulsos limpos, língua e umbigo intactos - era ainda filha de duas mães, de feições semelhantes, de essências assimétricas e de corações de puro ouro, puro amor, uma pela filha que pai não teve - mãe esta de sangue que me viria a ensinar tudo o que sou hoje, tudo em que acredito - e outra pela filha que sempre quis e nunca pode ter - que me ensinou durante anos a amar aquilo que era diferente, porque todos somos diferentes, todos temos defeitos e todos somos, de maneira diferente, perfeitos. Tempo amáveis, dizia, em que eu - de inocência centrada num livro antigo, de religião escolhida, com valores morais do mais católico que se podia ver - era também neta de quatro avós, duas d...