Recordo-me de quando as minhas feições eram apenas rascunhos, quando sonhos faziam de todo sentido e brincar aos legos durante horas num cubículo sem sol fazia ainda mais.
Tempos bem doces recordo, em que eu - de cabelos compridos e penteados, dois furos nas orelhas, pulsos limpos, língua e umbigo intactos - era ainda filha de duas mães, de feições semelhantes, de essências assimétricas e de corações de puro ouro, puro amor, uma pela filha que pai não teve - mãe esta de sangue que me viria a ensinar tudo o que sou hoje, tudo em que acredito - e outra pela filha que sempre quis e nunca pode ter - que me ensinou durante anos a amar aquilo que era diferente, porque todos somos diferentes, todos temos defeitos e todos somos, de maneira diferente, perfeitos.
Tempo amáveis, dizia, em que eu - de inocência centrada num livro antigo, de religião escolhida, com valores morais do mais católico que se podia ver - era também neta de quatro avós, duas de sangue e duas de amor, de sangue havia a simplesmente esquecida, que me ensinaram a ter pena e amar antes que fosse tarde demais, enquanto a outra me ensinou quase tudo o que sei, quase tudo o que sou, que foi minha avó, minha mãe e minha catequista. De afeição tive as mais doces, que recordarei para sempre embora uma delas já cá não me veja, mas que me verá de cima, como sempre acreditou e sempre me fez acreditar, que já me fez vestir roupas quentes em natais na aldeia, e roupas negras no cemitério da cidade. Restando-me de afeição a mais moderna das avós da aldeia, que defende o casamento homossexual num domingo santo, horas depois de ter ficado a ouvir o mesmo padre ler o mesmo livro pela vigésima quarta vez, aquela que só uma filha teve e que não durou, mas que veio a ganhar netos assim, babados.
Tempos perfeitos, diria, em que eu - meninas pálida e apaixonada - tive (e tenho) cinco irmãos, três meninos e duas meninas. Dos rapazes tenho um de sangue, por definição irritante e birrento, que me fazia mais mal do que bem, mas que hei de amar incondicionalmente para o resto dos meus dias. De afeição tenho dois, filhos da minha segunda mãe, um que se veio a tornar o mais prestável e semelhante de todos eles, aquele que ainda hoje confundem como meu irmão, aquele com quem partilhei tudo, sem nunca me esquecer de nada. Do ultimo rapaz posso dizer por fim ser o melhor, o único que nasceu com o dom de ver no ser humano apenas a bondade, de ver em nós tudo de bom, que tem o extraordinário poder de transformar os nossos defeitos em qualidades nas piadas dele, e a ele devo todo amor por aqueles que são, deliciosa e bondosamente, diferentes e mesmo assim, iguais. Das raparigas sobram-me duas de afeição muito semelhantes entre si, que me fizeram rir e chorar, berrar e espernear, irmãs essas que ainda hoje tenho como diários e tesouros, como cofres meus, porque graças a elas, ao longo dos anos, palavras como amor, irmã e lealdade vão fazendo cada vez mais sentido.
Gerações que valem a pena.
Tempos bem doces recordo, em que eu - de cabelos compridos e penteados, dois furos nas orelhas, pulsos limpos, língua e umbigo intactos - era ainda filha de duas mães, de feições semelhantes, de essências assimétricas e de corações de puro ouro, puro amor, uma pela filha que pai não teve - mãe esta de sangue que me viria a ensinar tudo o que sou hoje, tudo em que acredito - e outra pela filha que sempre quis e nunca pode ter - que me ensinou durante anos a amar aquilo que era diferente, porque todos somos diferentes, todos temos defeitos e todos somos, de maneira diferente, perfeitos.
Tempo amáveis, dizia, em que eu - de inocência centrada num livro antigo, de religião escolhida, com valores morais do mais católico que se podia ver - era também neta de quatro avós, duas de sangue e duas de amor, de sangue havia a simplesmente esquecida, que me ensinaram a ter pena e amar antes que fosse tarde demais, enquanto a outra me ensinou quase tudo o que sei, quase tudo o que sou, que foi minha avó, minha mãe e minha catequista. De afeição tive as mais doces, que recordarei para sempre embora uma delas já cá não me veja, mas que me verá de cima, como sempre acreditou e sempre me fez acreditar, que já me fez vestir roupas quentes em natais na aldeia, e roupas negras no cemitério da cidade. Restando-me de afeição a mais moderna das avós da aldeia, que defende o casamento homossexual num domingo santo, horas depois de ter ficado a ouvir o mesmo padre ler o mesmo livro pela vigésima quarta vez, aquela que só uma filha teve e que não durou, mas que veio a ganhar netos assim, babados.
Tempos perfeitos, diria, em que eu - meninas pálida e apaixonada - tive (e tenho) cinco irmãos, três meninos e duas meninas. Dos rapazes tenho um de sangue, por definição irritante e birrento, que me fazia mais mal do que bem, mas que hei de amar incondicionalmente para o resto dos meus dias. De afeição tenho dois, filhos da minha segunda mãe, um que se veio a tornar o mais prestável e semelhante de todos eles, aquele que ainda hoje confundem como meu irmão, aquele com quem partilhei tudo, sem nunca me esquecer de nada. Do ultimo rapaz posso dizer por fim ser o melhor, o único que nasceu com o dom de ver no ser humano apenas a bondade, de ver em nós tudo de bom, que tem o extraordinário poder de transformar os nossos defeitos em qualidades nas piadas dele, e a ele devo todo amor por aqueles que são, deliciosa e bondosamente, diferentes e mesmo assim, iguais. Das raparigas sobram-me duas de afeição muito semelhantes entre si, que me fizeram rir e chorar, berrar e espernear, irmãs essas que ainda hoje tenho como diários e tesouros, como cofres meus, porque graças a elas, ao longo dos anos, palavras como amor, irmã e lealdade vão fazendo cada vez mais sentido.
Gerações que valem a pena.
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