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A mostrar mensagens de julho, 2011
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"Também em francês trocava as palavras, mas o seu chofer Augusto não só a compreendia, como lhe respondia com palavras ainda mais embaralhadas. Ela o chamava de Eulalie, e ele, com avançada esclerose, atendia à vontade pelo nome do antigo patrão. E sentava-se com ela no sofá, dava-lhe o braço no jardim, permitia-se chama-la simplesmente pelo pronome, também afrancesado para Maria Violette. Quando Augusto morreu na cama dela, usando um pijama com o monograma do meu pai, mamae enviuvou de novo, de um luto mais profundo que o primeiro. E agora já não falava língua alguma, não se locomovia, nem sequer chorava, me enternecia assisti-la assim, com uma tristeza enfim cristalizada." Chico Buarque em Leite Derramado
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Queres mesmo saber a minha opinião? Lembraste quando - numa conversa das nossas à luz inexistente de um café fechado - me perguntaste a que me sabia o amor? Lembraste que te respondi com uma doçura extrema - a mim - o amor sabe-me a muito. A ti, o amor que antes era o típico, aquilo que nem te aquece nem te arrefece, passou a ambos os extremos, ou te ferve - perdendo assim toda a tua essência, deformando as arestas daquilo que realmente és - ou te congela, solidificado cada veia até ao foco, até ao músculo, até aquilo que já não acelera quando se toca na ferida. O amor, para ti, é exactamente como o café, para ti . É aquilo a que te habituaste mal, que te deixa dormir embora sempre irrequieta, aquilo que sempre te soube mal, a puro fel, amargo até ao extremo, aquilo que sempre foste cobrindo de açúcar. No final do dia tu chegas à conclusão que nem gostas de café, detestas o sabor do café, e apesar de quereres moldar-te ao seu sabor natural, tu enches sempre tudo de açúcar. Tu e o amor
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"Como sempre, acabei por ser eu a cair sobre mim mesma, dobrei-me sobre os meus novos vícios e, aceitando-te como minha droga, cobri-me de seringas e de saudades. Enganando-me assim num monogamia que nem nunca cumpri, despindo a minha máscara preferida, a minha lingerie preferida, mostrando-te assim as minhas cicatrizes e as minhas manchas. E no final, foste tu mesmo a derramar o meu sangue sobre o teu corpo disforme, enterrando-me exactamente onde me havias desenterrado antes. Farta estou eu deste cemitério de nós, estou cansada de engolir esqueletos nestas noites cada vez menos finitas em que insistes em gemer dentro de mim quando a única coisa que quero é morrer. Morrer fora daqui, longe de ti." Agosto 2010
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Foi nesta vila velha, aterrorizada, onde outrora se gritaram uivos a r eis  e rainhas, que os meus  pés  rastejaram suavemente, como quem beija a calçada enorme, disforme e gasta que me viu baptizar um dia, há uns bons anos, há uns poucos anos. Vila esta onde o som dos meus batimentos  cardíacos  se fez sentir nos meus passos curtos e  embriagados , por descalçar, som esse - jamais  romântico  num coração, outrora, tão deslavado como o meu - que fez ranger as paredes rachadas de tão velhas, escurecidas pela falta de iluminação artificial, deixando me com dois pares de passos desconhecidos, de passadas largar e tosses roucas, seguindo-me ao longo desta descida tão longe de ser finita, à quase  inexistente  luz arrepiante de uma Lua um pouco mais que cheia, amarga por natureza, morta e mesma assim crescente e decrescente ao longo do ciclo. Foi aqui, à luz de uma Lua semelhante que eu me perdi de mim, para te encontrar a ti.