derrames de outonos frios
ela cobre o rosto por entre os dedos gelados do inverno, espreita suavemente para reencontrar aqueles olhos azuis, intensificados pelo horizonte e morrer no laranja-mar de um por-do-sol adiantado. e os seus lábios rachados de frio abrem-se numa tentativa de contar a verdade e pedir desculpa. mas o corpo cala e a alma mente. fui eu? pergunta ele com aquela mistura angelical de cores a dissolver-se em lágrimas há muito por cair. e aquela vontade instintiva de dizer a verdade parece ter desvanecido como uma adolescente que ao ouvir a palavra amor sorri mas não acredita, porque faz parte da idade ser-se mentiroso, faz parte da idade ser-se infiel.
ao retirar os dedos da face encontra-se de pele gelada, com escamas a cristalizarem-se sobre o corpo engelhado e ferido, constantemente destruído por acção própria. e ele diz a palavra amor de novo, com uma certeza maior do que a anterior e maior que a primeira de todas. sofia cala, sofia sente o coração parar de bombear, o sangue gelado cansa-se de circular e o músculo atrofia, porque amar não requer aprender, requer prática e treino. e sofia pensa na palavra amor, crê até dizer a palavra amor, mas nada se ouve, e o corpo recusa-se a falar quando a alma mente. e a alma, o coração inerte no peito não diz a palavra amor, não diz palavra nenhuma. e ela fica assim calada, com o rosto agora a descoberto e com a sua cor-sem-jeito a dissolver-se agora em lágrimas magoadas mas que se culpam constantemente. porque sabe bem que no amor faz parte ir, e deixa ir. e morde o lábio inferior e come pele, e a boca sabe-lhe a sangue. tu tens de ir, e eu não consigo pedir-te que fiques, mas também não suporto ver-te ir. por isso, não vou ficar a ver-te ir na janela semi-aquecida da sala de estar. eu vou deixar-te ir. eu vou-te mandar embora. parece-me a mim que sou suficientemente altruísta para te deixar ir mas não o suficiente para não te mandar embora. e vira costas, por amar e não poder vira costas, pelo altruísmo doloroso, manda-o embora. porque não é egoísta ao ponto de lhe pedir que fique, mas não é assim tão pouco para o deixar ficar. e naqueles escassos segundos em que dava aquela meia volta, a sua vontade biológica de vir a ter dezenas de crianças cessou, a sua humanidade para com o amor solidificou num gigantesco bloco de gelo nunca mais pronto a quebrar, o sonho da sua casa de férias a beijar a costa alentejana e a sua mente de escritora romântica morreu durante aqueles cento e oitenta graus, que simbolizavam com uma exactidão grotesca, toda a reviravolta que acabara de decidir para a sua vida. porque amar podia ser bom, mas amar não era fácil e, depois daqueles anos tinha a certeza, amar não era para si.
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