derrames de quem se esgota, aqui
Odeio cada pormenor daquelas paredes brancas e azuis, temo cada visão daquele sítio e da sua estrutura tranquilizante, enoja-me a calma que transmite cinicamente. Fico com a certeza que tudo é efémero naquela sala de espera, e o modo como falam parece sempre demasiado benevolente para a maneira como a minha coluna se arrepia e não cede. E eu ouço-as falar, contar-me histórias em que não acreditam, dizem que passa, que sou demasiado nova para não passar, dizem que o corpo regenera e cura, que sou demasiado nova para ser estragada com tratamentos invasivos. Invasivos... pode algo ser mais invasivo que isto? E se o meu corpo não quiseres regenerar, se ao se deparar com esta doença que sou eu, quiser morrer?
E eu sei que achas que somos feitos daquilo que acreditamos e fazemos, que somos feitos daquilo que escolhemos. Mas o corpo é que paga, certo? E se o corpo não quiser mais pagar as dividas que lhe cobro? Se o corpo não tiver mais nada com que pagar e se deixar morrer de fome quando já não tiver para comer?
Sim, eu sei que não entendes a maneira como sinto as coisas a arder-me na pele calma, mas é isto que eu sou, é desta carne que sou feita, é esta carne que morreu nos braços dos outros que tenho para te dar. E se o corpo quiser morrer e eu não? posso eu ficar?
Por favor deixa-me ficar, deixa-me viver e não deixar que respirar seja apenas um relógio, deixa-me cometer mais uns erros enquanto tenho idade, e deixa o meu corpo ficar, deixa-o regenerar enquanto eu sou capaz. Deixa-me esgotar a alma antes do corpo como uma velhinha sentada num banco de jardim ao final do dia. Deixa-me esgotá-lo agora antes que seja ele a esgotar-me a mim.
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