derremes de escritora(s)


      "Eu sou uma escritora - convenceu-me ela - é isso que eu sou. Dizia-me que tenho a personalidade vincada de alguém que pensa bem mais do que fala, alguém que sente bem mais do que transpõe. Não tenho olhos que falam não, tenho olhos que gritam e que por tanto gritarem também mentem. Memórias vincadas - diz-me serem jeitos vincados, manias que nunca se perdem - de quem, com pouco mais que olhos derretidos, conseguia companhias para as longas horas da madrugada que se avizinhava. E com olhos que nunca adoçavam, assim os mantinha, estáticos e abertos pela noite dentro, sem os fechar para dormir, levantando o queixo num movimento atroz e com ele levantando o corpo todo, e sem beijinhos de despedida, sem pestanejar sequer saía tantas vezes com aqueles olhos ordinários de que falavas. Dedicando tudo o que o coração não calava a umas miseras linhas de abertura de alma e fechar dos olhos, que tanto se cansavam de ver. E nos domingos de sábados eternos, com a minha escrita a vibram-me no cérebro, lá ia eu passar a manhã e a tarde numa cama lavada de frio, vazia de mim a noite toda, de lençóis de braços cruzados como uma criança birrenta que não quer dormir sozinha porque tem pesadelos (e quantos foram os meus? quantas vezes quis acordar por achar que tal sábado não podia ser mais do que um pesadelo mal sonhado?). Personalidade essa, memórias essas, que me vincaram a pele, em pregas demasiado profundas para serem apagadas com um ferro a ferver por cima (e quantos ferros a ferver não quis eu passar?). Memórias de sábados sem razão e domingos sem perdão, quando o caixão luta para sair da cova e não chora nem grita, só geme. Porque eu sou uma escritora, é o que eu sou, e por tanto o ser te digo, eu sei o que é vincar no amor, sei o verdadeiro significado de um amor em todas as perspectivas platónico, um amor utópico e no final, irreal. Sei, com vincos nas costas o que é viver entre a ilusão de sábados e o abismo dos domingos, sei o que é viver com o cérebro sob pressão e o coração congelado na gaveta da arca onde está tudo-aquilo-que-comprei-mais-nunca-vou-usar-ou-descongelar. E como escritora, como amante única do entrelaço das letras, te digo: eu conheço o amor, a morte, a dor e a solidão de todos eles (não os conhecemos todos?), mas como escritora te prometo: eu amo-os de igual modo."

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