Derrames de Espectros

Viver na capital era para ela um pecado em si - explicava calmamente do outro lado da linha - dizia que nada se encaixava no seu ser, que todas as dúvidas sobre as suas escolhas surgiam agora entre a noite que ainda não adormeceu pela manhã. Dizia ela ter medo, algo tão raro desde que a conheço - e acredita, conheço-me a muitos anos - medo de não saber quem era, de acordar um dia com uma ânsia tremenda de correr para ou braços de outra mulher e não querer mais voltar às origens. Dizia ela que a sexualidade era um espectro, como já ouvira uma vez numa serie televisiva, e que acreditava que muitas pessoas se encontravam algures no meio. Estaria ela a considerar-se no meio ou a esperar estar apenas no meio? Cruzava e descruzava as pernas conforme se lembrava do mal que fazia e continuava a divagar. Os sonhos mudam com o tempo ou com as pessoas em si? Perguntava. Será então possível uma pessoa permanecer a mesma mas todos os seus sonhos mudarem de lugar? Para mim a resposta era simples: as pessoas não mudam, a essência e natureza do que somos nunca muda, os sonhos, os medos, os modos. Para mim - muito mais claro do que para ela - alguém que muda tão facilmente de sonho foi alguém que nunca sobe quem era, alguém que nunca encontrou o seu lugar e por isso nem o seu sonho conhecia ainda. Alguém que não sabe quem é não tem sonhos, tem desejos, impulsos, teorias, hipóteses, dúvidas. E nestas poucas palavras se resume um dos melhores amores da minha vida. Um dos, porque a vida é um espectro também, e eu espero no meu lugar de sempre, naquele que sei ser tão meu, que a vida de mostre as suas cores e que eu decida por mim mesma adaptar - ou não - o meu sonho aos sonhos das mulheres e homens da minha vida. 

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